sexta-feira, 12 de outubro de 2007

WALTER BENJAMIN - Fragmentos Estéticos

PINTURA E GRAVURA

Um quadro pede para ser exposto na vertical diante de quem o vê. No chão, um mosaico está na horizontal a seus pés. No que se refere a esta diferença, e sem sequer pensar nela, é costume olhar para uma gravura como se olha para um quadro. No entanto, quando se trata da gravura há que fazer uma distinção muito importante e profunda: poderá contemplar­-se o estudo para uma cabeça, uma paisagem de Rembrandt, como se se tra­tasse de um quadro, ou, quando muito, deixá-los numa posição neutra, na horizontal. Em contrapartida, vejamos o que se passa com os desenhos infantis. Se os colocarmos à nossa frente em posição vertical, iremos na maior parte dos casos contra o seu sentido mais íntimo, e o mesmo se passa com os desenhos de um Otto GroBu, que temos de colocar horizontalmen­te sobre uma mesa. Estamos perante um problema muito profundo da arte e do seu enraizamento no mito. Poderíamos falar de dois cortes através da substância do mundo: o corte longitudinal da pintura e o corte transversal de certas gravuras. O corte longitudinal parece ter uma natureza expositiva, contém, de certo modo, as coisas; o corte transversal é simb6lico, contém os sinais. Ou será apenas o nosso modo de leitura que nos leva a colocar a página na horizontal à nossa frente? E haverá, porventura, também uma posição vertical nos prim6rdios da escrita, por exemplo gravada na pedra?1 O que importa aqui, naturalmente, não é apenas o simples resultado exterior, mas o espírito: a questão de saber se o problema deve ser desenvolvido a partir da proposição simples de que a posição do quadro é a vertical e a do desenho a horizontal, apesar de isso poder ser observado, através dos tempos, em relações metafísicas diversas.
Os quadros de Kandinsky: coincidência de evocação e manifestação.

SOBRE A PINTURA, OU SINAL E MANCHA

A. O sinal
A esfera do sinal abrange diversos domínios, que se caracterizam pelas diferentes significações que neles assume a linha. Essas significações são: a linha da geometria, a linha dos caracteres escritos, a linha do desenho ou da gravura, a linha do sinal absoluto (a linha mágica enquanto tal, independentemente daquilo que representa).
a), b) Não consideramos, no contexto que aqui nos ocupa, a linha da geometria e a dos caracteres escritos.
c) A linha do desenho/da gravura. Esta linha é determinada pelo con­traste com a superficie; este contraste não se limita a ter nela apenas um : significado visual, tem também um significado metafisico. De facto, o fundo tem uma relação de subordinação face à linha. A linha do desenho/da gravura marca a superfície, determinando-a, na medida em que a subordi­na a si como seu fundo. Por sua vez, uma linha desenhada também só exis­te sobre esse fundo, de tal modo que, por exemplo, um desenho que cobrisse totalmente o seu fundo deixaria de o ser. Isto significa que ao fun­do está destinado um lugar preciso, indispensável ao sentido do desenho, de tal modo que no seu interior duas linhas só podem determinar a sua relação recíproca por relação também com o fundo comum; trata-se, neste caso, de um fenómeno no qual se torna particularmente clara a diferença entre a linha do desenho/da gravura e a linha geométrica. A linha desenha­da confere identidade ao seu fundo. A identidade própria do fundo de um desenho é completamente diferente da da superfície branca do papel onde se encontra, à qual provavelmente essa noção de identidade devia ser recu­sada, se quiséssemos entendê-la como uma sucessão de ondas brancas (eventualmente não perceptíveis a olho nu). O desenho puro não alterará a função graficamente determinante do sentido do seu fundo pelo facto de o deixar em branco; daqui resulta que, em determinadas circunstâncias, a representação de nuvens e do céu em desenhos poderá ser arriscada, e mes­mo pedra-de-toque da pureza do seu estilo.
d) O sinal absoluto. Para compreender o sinal absoluto, ou seja, a essência mitológica do sinal, teríamos de saber alguma coisa sobre a esfera do sinal a que nos referimos no início. De qualquer modo, esta esfera não é provavelmente nenhum medium, mas representa uma ordem que, actual­mente, quase de certeza desconhemos de todo. Uma coisa, porém, parece evidente: a oposição entre a natureza do sinal absoluto e a da mancha absoluta. Esta oposição, de uma importância metafisica enorme, está ain­da por encontrar. O sinal parece ter uma relação mais acentuadamente espacial e uma ligação à pessoa, a marca (como veremos adiante) tem um significado mais temporal, excluindo mesmo tudo o que se refira à pessoa. São sinais absolutos: o sinal de Caim, o sinal com o qual foram assinaladas as casas dos Israelitas por altura da décima praga do Egipto, o sinal, prova­velmente semelhante, na história de Ali Babd e os Quarenta Ladrões; com as necessárias reservas podemos, referindo-nos a estes casos, pressupor que o sinal absoluto tem um significado predominantemente espacial e pessoal.

B. A mancha

a) A mancha absoluta. Na medida em que é possível saber alguma coi­sa sobre a natureza da mancha absoluta, ou seja, sobre a essência mítica da mancha, isso será importante para toda a esfera da mancha, por oposição à do sinal. A primeira diferença fundamental reside no facto de o sinal ser uma marca que se imprime, enquanto a mancha, pelo contrário, é algo que se manifesta. Isto diz-nos que a esfera da mancha é a de um medium. Enquanto o sinal não surge predominantemente no que é vivo, mas é tam­bém aposto a edifícios inertes ou árvores, a mancha manifesta-se sobretudo no vivo (as chagas de Cristo, o rubor, talvez a lepra, o sinal de nascença). .Não existe oposição entre mancha e mancha absoluta, pois a mancha é sempre absoluta e, ao manifestar-se, não se assemelha a nenhuma outra coi­sa. Um traço muito particular da mancha, que lhe advém da sua radicação no vivo, é a sua ligação frequente à culpa (o rubor) ou à inocência (as cha­gas de Cristo); mesmo nos casos em que a mancha se manifesta nas coisas inanimadas (o halo de raios solares na peça de Strindberg Advento), ela é muitas vezes um sinal de advertência de culpa. Neste sentido surge em simultâneo com o sinal (em Belsazar), e a grandiosidade desta aparição assenta, em grande parte, na união destas duas configurações, só atribuível a Deus. Sendo a relação entre culpa e expiação mágica em termos de tem­po, esta magia temporal manifesta-se de preferência na mancha, no sentido em que a resistência do presente, enquanto momento inserido entre passa­do e futuro, é neutralizada, e estas duas dimensões do tempo se abatem sobre o pecador, aliando-se de forma mágica. Mas a mancha enquanto medium não tem apenas esta significação temporal; assume também outra, que se manifesta de forma particularmente perturbante no afluir do rubor ao rosto e dissolve a personalidade em determinados elementos primitivos. E isto leva-nos, de novo, à relação íntima entre mancha e culpa. O sinal, no entanto, manifesta-se, não raras vezes, como algo que distingue a pessoa; e também esta oposição entre sinal e mancha parece pertencer à ordem meta­física. No que se refere à esfera da mancha em absoluto (i.e, ao medium da mancha em absoluto), a única coisa que pode ser conhecida neste contexto terá de ser dita depois de feitas as considerações sobre a pintura. Mas, como já se disse, tudo o que se refere à mancha absoluta é de grande importância para o medium da mancha em geral.
b) A pintura. O quadro não tem fundo. E uma cor também nunca se sobrepõe a outra, revela-se, quando muito, no medium dessa outra cor. E também isto não é muitas vezes perceptível, de onde se poderia concluir que, em princípio, não é possível distinguir, em certos quadros, qual é a cor de fundo e qual a de superfície. Esta questão, porém, não tem sentido. Na pintura não há fundo, na pintura não há linha desenhada. A delimitação recíproca das zonas de cor (composição) num quadro de Rafael não assenta na linha desenhada. Este erro deve-se, em parte, à interpretação estética do facto, puramente técnico, de os pintores comporem os seus quadros pelo desenho antes de os pintarem. Mas a essência dessa composição nada tem a ver com o desenho. O único caso em que a linha e a cor se encontram é o da aguarela, em que os contornos do lápis são visíveis e a cor é aplicada em transparência. Neste caso, o fundo conserva-se, apesar de colorido.
O medium da pintura é designado como a mancha em sentido estrito, pois a pintura é um medium, uma mancha deste tipo, uma vez que não conhece, nem fundo, nem linha desenhada. O problema da obra pictórica só se coloca àquele que tem consciência da natureza da mancha em sentido estrito, mas que, por isso mesmo, se surpreenderá por encontrar no quadro uma composição que não pode explicar com referência ao desenho. Acon­tece, porém, que a existência de uma tal composição não é uma aparência, não é por acaso nem por engano que o observador de um quadro de Rafael, por exemplo, depara na mancha com configurações de pessoas, árvores, animais. E isso explica-se pelo seguinte: se o quadro fosse apenas mancha, seria, por isso mesmo, completamente impossível nomeá-lo. Mas, na verda­de, o verdadeiro problema da pintura encontra-se na premissa de que o quadro é realmente mancha e, vice-versa, de que a mancha em sentido estrito só se encontra no quadro, e ainda de que o quadro, na medida em que é mancha, só é mancha no próprio quadro, mas que, por outro lado, o quadro, precisamente na medida em que é nomeado, se relaciona com qualquer coisa que ele próprio não é, ou seja, com qualquer coisa que não é mancha. É a composição que torna possível esta relação com aquilo que dá nome ao quadro, com o que é transcendente à mancha. Ela representa a entrada de um poder superior no medium da mancha, poder esse que, mantendo por esta via a sua neutralidade, ou seja, não desfazendo de modo nenhum a mancha por meio do desenho, encontra nela o seu lugar sem a desfazer - isto porque tal poder, sendo incomensuravelmente superior à mancha, não lhe é hostil, mas aparentado com ela. Este poder é a palavra­-de-linguagem, que se estabelece no medium da linguagem pictórica, que como tal é invisível e se manifesta apenas na composição. É a composição que dá nome ao quadro. De acordo com o que se disse, torna-se evidente que a mancha e a composição são elementos de todo o quadro que reivin­dique o seu direito a ser nomeado. Mas um quadro que não fizesse isto dei­xaria de o ser, entrando assim no medium da mancha em absoluto, coisa que nós, no entanto, não temos capacidade de representar.
As grandes épocas da pintura distinguem-se, segundo a composição e o medium, pela palavra e pela mancha em que essa palavra entra. É eviden­te que, quando falamos de mancha e palavra, não se trata da possibilida­de de quaisquer combinações arbitrárias. Seria perfeitamente imaginável, por exemplo, que nos quadros de Rafael tenha entrado na mancha predo­minantemente o nome, e nos dos pintores de hoje a palavra judicativa. A composição, ou seja, a nomeação, é determinante p~ra o reconhecimento da conexão entre o quadro e a palavra; mas em geral o lugar metafísico de uma escola de pintura ou de um quadro deve ser determinado a partir do tipo de mancha e de palavra, pressupondo, por isso, uma diferenciação ela­borada dos tipos de mancha e de palavra, de que mal ainda se descortinam as primícias.
c) A mancha no espaço. A esfera da mancha manifesta-se também em configurações espaciais, do mesmo modo que o sinal, numa determinada função da linha, tem indubitavelmente um significado arquitectónico (portanto, também espacial). Tais manchas no espaço estão já visivelmente articuladas, através da significação, com a esfera da mancha; mas só uma investigação mais rigorosa poderá determinar de que modo isso acontece. Essas manchas surgem sobretudo em forma de monumentos funerários ou pedras tumulares, dos quais, naturalmente, e num sentido mais exacto, apenas as criações arquitectónica e plasticamente informes serão manchas.